2 de agosto de 2012

Uma álgebra diferente

[Fonte: Uma álgebra diferente:]

John Boole era um sapateiro. Mas não era um sapateiro qualquer, era um sapateiro muito especial. Para ser franco, como sapateiro não deveria ser lá grande coisa. Tanto assim que sua sapataria abriu falência em 1831, o que obrigou George, seu filho mais velho, a sustentar a família – pais e dois irmãos – ainda com a idade de 16 anos. Mas o forte de John era seu amor pela matemática. Um amor tão grande que foi ele que levou John à falência, como consta da biografia de seu filho George no Mac Tutor History of Mathematics: “John’s love of science and mathematics meant that he did not devote the energy to developing his business in the way he might have done” (O amor de John pela ciência e matemática fez com que ele não devotasse a energia que deveria ao desenvolvimento de seu negócio).
Afortunadamente este amor foi transmitido ao filho George, a quem John ensinou matemática desde a infância. George, um menino excepcionalmente inteligente, começou a frequentar a escola aos dois anos de idade, algo não muito comum na época. Aos sete, seu interesse voltou-se para o aprendizado de idiomas. Aprendeu latim com William Brooke, um livreiro amigo de seu pai e mais tarde aprendeu sozinho francês, alemão e grego. E tanto aprendeu que aos catorze anos provocou involuntariamente sua primeira controvérsia: verteu do grego para o inglês um poema de Meleager e o fez tão bem que o pai John, orgulhoso, providenciou que fosse publicado. O que levou um professor local cujo nome não importa a levantar a dúvida sobre a autoria da tradução alegando que “any 14 year old could have written with such depth” (nenhuma criança de 14 anos poderia ter escrito com tal profundidade).
George Boole (imagem da Wikipedia)George Boole (Foto: Reprodução/Wikipedia)
Pois foi este jovem, George Boole, que ainda adolescente foi obrigado a aceitar a posição de professor assistente na Heigham’s School, em Doncaster, Inglaterra, para prover o sustento da família em virtude da falência do negócio do pai. E professor continuou – em diversas instituições de ensino, incluindo sua própria escola, que abriu aos dezenove anos em Lincoln, Inglaterra, até o Queen’s College, em Cork, Irlanda, onde foi Reitor de Ciências – até falecer em 1864, aos 49 anos, como membro da Royal Society.
O interesse de George em matemática avançada começou ainda na adolescência. Aos dezoito anos foi presenteado com o livro de Lacroix sobre cálculo diferencial e integral, o que o levou a aprofundar-se no assunto que já vinha estudando há cinco anos. Dedicou-se ao tema por quase toda a vida e sobre ele publicou mais de cinquenta trabalhos, dois dos quais foram especialmente importantes o “Treatise on Differential Equations” em 1959 e o “Treatise on the Calculus of Finite Differences” em 1860. Ao morrer ainda pesquisava o assunto, deixando inacabada uma obra que foi publicada post mortem por seu amigo Isaac Todhunter.
Mas o que isto tem a ver com uma série de colunas sobre o transistor?
Até agora, nada. Porém, no início da década de 1850, um de seus alunos, Augustus De Morgan, envolveu-se em um debate com Sir William Hamilton sobre o conceito lógico de “quantificação”. O que levou Boole a se interessar pelo tema para ajudar o amigo. E quando Boole se interessava por alguma coisa, o mínimo que se pode dizer, usando linguagem contemporânea, é que ele não deixava barato…
Até então Boole não considerava a lógica como sendo um ramo da matemática. Achava que ela apenas fornecia as bases para desenvolver raciocínios usando a inferência (Do Houaiss: Inferência: “operação intelectual por meio da qual se afirma a verdade de uma proposição em decorrência de sua ligação com outras já reconhecidas como verdadeiras”). Porém, ao se aprofundar no tema, acabou por desenvolver um método simbólico para estabelecer estas inferências. Método este que permitia que as proposições lógicas fossem expressas por meio de equações algébricas cuja manipulação levava à solução da equação e, por consequência, a resolução do problema lógico.
Simplificando: Boole reduziu a lógica a um tipo de álgebra. Que, muitos anos mais tarde (em 1913), passou a ser conhecida como “Álgebra Booleana” por sugestão de Henry Sheffer. E em 1954 George Boole publicou suas ideias em um trabalho intitulado “An Investigation of the Laws of Thought on Which are Founded the Mathematical Theories of Logic and Probabilities” (Uma pesquisa sobre as leis do pensamento que fundamentam as teorias matemáticas da lógica e da probabilidade). Se algum trabalho pode ostentar o caráter de “seminal” é este .
Se levarmos em conta que o tema é totalmente abstrato e que não havia qualquer base teórica até então para apoiar suas ideias, não há como deixar de considerar o trabalho de Boole uma obra extraordinária, quase surreal. Pois ele, usando exclusivamente sua imaginação, criatividade, capacidade de abstração e, naturalmente, seu gênio matemático, conseguiu construir passo a passo, tijolo por tijolo em um desenho lógico (obrigado, Chico), toda uma ciência até então inexistente, estabelecendo desde as operações fundamentais (aquelas mesmas que discutimos nas colunas anteriores, NOT, AND e OR), até as operações derivadas. E, usando isto como base, instituiu os axiomas da nova ciência, deduziu suas leis e estabeleceu métodos para resolver suas equações. Em suma: pela primeira vez a lógica foi incorporada à matemática.
Em suma: Boole criou uma Álgebra do nada como um mágico tira um coelho de sua cartola.
Convém notar que o trabalho de Boole, tão importante que passou a ser conhecido simplesmente como “Laws of Thought”, foi desenvolvido exclusivamente a partir do interesse despertado em George Boole por sua participação na controvérsia entre De Morgan e Hamilton. Não havia qualquer objetivo, digamos, prático, para que fosse escrito. Nem depois de publicado se vislumbrou para ele qualquer aplicação em engenharia e muito menos em eletrônica, um ramo da tecnologia que só veio a surgir no século seguinte.
Resumindo: em termos práticos, o “Laws of Thought” não tinha qualquer serventia.
E foi tratado de acordo: tanto quanto eu saiba, na ocasião em que foi publicado, ninguém deu qualquer importância a ele. Ninguém exceto o próprio Boole, naturalmente. Que percebeu estar ali uma das obras mais importantes jamais publicadas, a base da tecnologia moderna, os fundamentos sobre os quais se assentam a concepção de tudo o que diz respeito às ciências da informática e telecomunicações. E que, mostrando uma espantosa capacidade de previsão, mesmo desconhecendo inteiramente os campos nos quais sua álgebra seria empregada, pouco antes de publicar seu trabalho, em 1851, escreveu uma carta para seu colega e matemático Lord Kelvin afirmando:
I am now about to set seriously to work upon preparing for the press an account of my theory of Logic and Probabilities which in its present state I look upon as the most valuable if not the only valuable contribution that I have made or am likely to make to Science and the thing by which I would desire if at all to be remembered hereafter” (No momento me dedico à preparação para publicação das bases de minha teoria sobre Lógica e Probabilidade que, em seu estado atual, eu considero a mais valiosa – senão a única valiosa – contribuição que fiz ou que provavelmente farei à ciência e, de todas, aquela pela qual eu desejo ser lembrado no futuro) .
Que notável o poder de antevisão de um gênio! Pois, justamente em virtude desta teoria, não apenas ele é lembrado até hoje como provavelmente jamais será esquecido.
A razão disto veremos na próxima coluna.
Até lá.
B. Piropo

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