25 de agosto de 2012

A ÉTICA DE ANTÔNIO VIEIRA

[Fonte: A ÉTICA DE ANTÔNIO VIEIRA: ]




O Princípio da Honestidade no Brasil do
Século 21  



Carlos Cardoso Aveline



Acusado de “heresia”,
Antônio Vieira viveu
diversos anos preso em
cárcere mantido por cardeais

que torturavam e matavam em nome de Jesus


  


visão interior da meta antecede a ação.  Saber o que é
correto é mais fácil do que colocá-lo em prática eficientemente.

Assim, a chave ética para a transformação política da sociedade
não terá de ser descoberta em algum momento do futuro, porque já vem sendo
descrita e mostrada há milênios. 

“Não há nada de
novo debaixo do Sol”, diz a Bíblia. E um exemplo claro disso é que a questão da
existência ou não de ética na política – decisiva para o Brasil do século 21 –
já foi esclarecida corajosa e magistralmente pelo padre Antônio Vieira em um
sermão feito em Lisboa em 1655, por coincidência, alguns poucos  anos
antes de ele ser recolhido às prisões da Santa Inquisição portuguesa.

Polêmico como
todos os profetas, Vieira contou uma história para mostrar a diferença entre um
assalto comum e o roubo em grande escala. Disse ele que, certo dia, o imperador
Alexandre, da Macedônia, navegava em direção às Índias com sua poderosa frota
de guerra quando foi trazido à sua presença um pirata que andava roubando os
pescadores do mar Eritreu. Alexandre repreendeu o homem por suas atividades
desonestas. Mas aquele pirata do século quatro antes de Cristo não era medroso
nem tímido, e respondeu:

“Então, senhor,
eu, que roubo em uma barca, sou ladrão, e vossa excelência, que rouba com uma
frota inteira, é um imperador?”

Vieira citou a
seguir o comentário do filósofo Sêneca: “Se qualquer rei fizer o que fazem o
ladrão e o pirata, merece o mesmo nome que eles”. Para aquele padre português,
que serviu o Brasil como poucos, o que mais causava assombro e vergonha era ver
que os pregadores religiosos do seu tempo não defendiam a mesma doutrina. O
silêncio deles, dizia Vieira, era uma grave acusação contra os príncipes.

“Não são ladrões
apenas os que cortam as bolsas”, disse o padre, citando São Basílio. “Os
ladrões que mais merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os
exércitos e as legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais, pela manha ou pela força, roubam e despojam os povos. Os
outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
correndo risco, estes furtam sem temor nem perigo. Os outros, se furtam, são
enforcados; mas estes furtam e enforcam.”(1)

Depois de
mencionar a responsabilidade dos líderes religiosos, Vieira comenta o papel dos
reis (e chefes de Estado) no processo da corrupção generalizada: “Aquele que
tem a obrigação de impedir que se furte, se não o impediu, fica obrigado a
restituir o que se furtou...”

Pouco mais de
trezentos anos depois da morte de Vieira, ocorrida em 1697, as palavras dele
continuam proféticas. Ao descrever a atuação dos administradores públicos no
vasto reino português do século 17, ele parecia falar também do nosso Brasil
republicano no início do século 21:

“Furtam de modo
permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
Conjugam de todos os modos o verbo roubar...”

A desonestidade
nas relações políticas e a corrupção dos administradores públicos não são,
portanto, um fenômeno recente. Mas só um pessimista muito afastado da realidade
dos fatos pode ignorar que a transparência e a informação plena são a marca do
século 21, e que elas dificultam  a corrupção.



Ao mesmo tempo, é
impossível instalar a ética na política de modo estável e permanente enquanto
não houver ética nas relações econômicas e na estrutura social. Os avanços
tecnológicos das últimas décadas eliminaram grande parte dos obstáculos
materiais para uma vida melhor. Há muitas soluções simples que ainda não foram
adotadas pelos nossos líderes políticos apenas porque necessitam de uma dose
maior de honestidade e decência por parte de todos, e um pouco menos de egoísmo.

Por exemplo: a
produtividade da economia cresceu de modo extraordinário nos últimos 50 anos do
século vinte, mas o poder aquisitivo dos trabalhadores não aumentou na mesma
proporção, e o desemprego continua uma ameaça. Ora, há duas maneiras principais
de repassar o aumento de produtividade para o trabalhador. Uma é aumentar o
salário. A outra é diminuir a jornada de trabalho. Se esta idéia for colocada
em prática, o trabalhador terá mais tempo para o lazer e a cultura. Terá mais
qualidade de vida e chances de ser um cidadão melhor. O desemprego diminuirá e,
conseqüentemente, haverá menos crimes nas ruas.

Há uma outra
questão social decisiva para a vida política do País é, sem dúvida, a reforma
agrária. Não pode haver ética duradoura na política enquanto não houver justiça
social no campo, porque, afinal, todas as questões estão integradas.

As igrejas cristãs
e demais lideranças espirituais têm atuado pouco no campo da ética política, e
isto aumenta as dificuldades. No futuro próximo, porém, os espiritualistas
sintonizados com a energia do futuro assumirão com força crescente o seu dever
de irradiar, o mais rápido possível, honestidade e decência para os diferentes
níveis da sociedade brasileira. Este será ao mesmo tempo um teste para a
coerência das nossas lideranças espirituais, porque a pregação ética não tem
valor se não nasce de uma prática concreta.

Os gestos práticos
são, de fato,  o discurso mais eloqüente. E não se trata tanto de combater
o mal quanto de fazer e estimular o bem. Todo ser humano tem qualidades
positivas e negativas. A grande tarefa política é criar uma espécie de reação
química coletiva que faça crescer os sentimentos positivos entre as pessoas e
os setores da sociedade, de modo que as qualidades positivas entrem em
movimento e a negatividade perca espaço e acabe sendo transcendida. O desafio
do líder político da nova era é criar no cidadão um sentimento de confiança
vigilante em si mesmo, nos outros e no nosso futuro comum. Neste contexto, a
oposição entre esquerda e direita pode ficar reduzida em grande parte a um mero
jogo de palavras.

Até algum tempo
atrás, os movimentos políticos de esquerda pareciam quase donos da bandeira da
ética; mas atualmente há uma grande falta de heróis nessa área.

Os partidos
políticos não têm sabido interpretar nem encaminhar de modo eficaz o problema
ético, apesar de ele ser a questão central do processo político brasileiro. A
razão desta dificuldade é simples: o problema ético depende da consciência
interior de cada um e não pode ser resolvido apenas no plano externo da
política e do jogo das aparências.

A visão interna e
espiritual da realidade é indispensável, porque a atmosfera psíquica ou
psicosfera do País é alimentada pelos pensamentos mais íntimos de cada um de
nós. A consciência social é alimentada pela consciência de cada pessoa. De
certo modo, os políticos desonestos estão apenas levando às últimas
conseqüências as pequenas desonestidades físicas, emocionais e mentais que
alguns cidadãos pensam que podem cometer impunemente nas suas relações
familiares ou profissionais. O cidadão que busca tirar vantagens dos outros
dizendo meias-verdades aumenta a presença sutil da falsidade na psicosfera.

Do mesmo modo, o
cidadão que decide viver o mais honestamente possível em todos os aspectos da
vida funciona como purificador da atmosfera psíquica, trocando vibrações densas
por outras mais leves, e pensamentos escuros por idéias bem definidas e claras.
Cada indivíduo está ligado internamente a tudo o que acontece no País e no
mundo, porque o processo humano é um só e indivisível. Quando um de nós
aperfeiçoa a si mesmo, está aperfeiçoando os outros no plano espiritual.
Falando de política, o sábio chinês Confúcio disse há 2500 anos: “Se você for
capaz de corrigir-se, não terá dificuldades ao governar. Se você não for capaz
de corrigir-se, não conseguirá corrigir os outros.” (2) Agora
estamos quase no ponto de aprender a lição.

Nos Ioga Sutras de
Patañjali – o maior tratado de ioga de todos os tempos –, uma das abstinências
exigidas é não roubar. Mas a tarefa é mais difícil do que parece à primeira
vista:

“A maior parte de
nós não é dada ao roubo como ele é usualmente entendido”, comenta Rohit Mehta.
“Mas existem aspectos mais profundos do roubo dos quais podemos não estar
livres.” Qualquer forma de imitação, mesmo sutil, pode ser um furto. Um
relacionamento em que há uso de outra pessoa para satisfação própria é uma
forma de roubo. Todo excesso tem alguma semelhança com o furto, e a honestidade
é quase sempre inseparável da moderação e do equilíbrio. (3)

O desafio político
dos cidadãos da nova era torna necessário reexaminar sua atitude diante da
sociedade brasileira a partir de um ponto de vista central: não podemos ser
altruístas na vida pessoal enquanto agimos de modo egoísta ou irresponsável em
nossas relações econômicas, políticas e sociais. Ao contrário. É preciso
recriar o mundo concreto e as relações humanas a partir do sentimento de
fraternidade que a busca espiritual faz nascer dentro de nós.



É verdade que o
caminho místico desperta a necessidade de uma vida menos agitada e mais
silenciosa, aumentando  o prazer de estar sozinho no plano físico. Mas o
sentimento de solidariedade profunda e o amor pela humanidade só aumentam
quando a busca interior é autêntica – mesmo que se prefira levar uma vida um
pouco mais retirada.

Não é por acaso
que a participação dos místicos na vida política brasileira sempre foi
decisiva. O sentimento de solidariedade é inevitável. Tiradentes, o mártir da
Independência, era simpatizante ativo do movimento maçônico. Ele disse que, se
tivesse dez vidas, daria todas elas pela causa da libertação do nosso país.
José Bonifácio, Gonçalves Ledo e os principais líderes da Independência eram
maçons e transcendiam o dogmatismo religioso, embora em muitos casos tivessem
uma visão limitada da questão espiritual. Frei Caneca, morto por seus ideais
republicanos e democráticos, era maçom, assim como o barão de Rio Branco,
Benjamin Constant, marechal Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Campos Sales
e o duque de Caxias. O grande jurista Ruy Barbosa, o presidente Prudente de
Morais e o presidente Washington Luís foram maçons, do mesmo modo que os
jornalistas Júlio de Mesquita e Júlio de Mesquita Filho. Todos esses
personagens da nossa história certamente cometeram equívocos, alguns graves, e
também discordaram freqüentemente um dos outros. Mas eles tiveram em comum uma
certa abertura para a visão mística da vida.(4)

O pioneiro do
jornalismo brasileiro, Hipólito José da Costa, fundou o jornal Correio
Braziliense no exílio, em Londres, em 1808, fazendo dele um instrumento de luta
pelo fortalecimento do Brasil. Hipólito, maçom respeitado mundialmente, foi um
estudioso notável das tradições de mistérios e passou vários anos nas prisões
da Inquisição, perseguido por seus ideais.

Independentemente
dos movimentos espiritualistas ou esotéricos organizados, há hoje uma tarefa
histórica inevitável diante das forças políticas: aprender a lição da ética e,
ao mesmo tempo, assumir uma atitude prática e construtiva em relação ao futuro.
A corrupção não apenas se alimenta do pessimismo, mas também tende a
realimentá-lo. Entre os lugares comuns usados pelos ladrões para justificar-se
está o de que “sempre haverá ladrões”. Mas a verdade é que a sociedade avançou
muito desde o tempo daquele sermão de Antônio Vieira, e agora estamos chegando
a uma situação radicalmente nova no Brasil. A ética em todas as relações
sociais é uma experiência inevitável nos novos tempos.

O século 21
começou e os movimentos sociais não têm mais condições de limitar-se a fazer
críticas. A política baseada apenas em discursos leva ao vazio, ou  uma
postura de negação do presente e do futuro com fixação nos hábitos populistas
do passado. Os setores de esquerda – como todos os outros – estão mudando e
necessitam mudar mais em direção a atitudes crescentemente  éticas e
criativas.

Ruy Barbosa
escreveu em 1910 que “uns plantam a semente de couve para o prato de amanhã, e
outros a semente de carvalho para o futuro. Os primeiros cavam para si mesmos,
os últimos lavram para o seu país”. Com dirigentes políticos decentes, capazes
de ouvir a população e buscar o bem do Brasil a longo prazo, o País poderá
finalmente realizar na prática o velho sonho futurista do patriarca da
Independência, José Bonifácio, que escreveu:

“Nós não
reconhecemos diferenças nem distinções na família humana. O chinês, o
português, o egípcio, o haitiano, o adorador do Sol e o de Maomé serão
tratados como brasileiros. Porque, afinal, esta paz divina e concórdia celeste
ligarão um dia todo o mundo, e farão, de todos os homens, uma só família.”(5) 

Esta é a política
do século 21. Com ela poderá nascer a federação mundial democrática sonhada há
séculos por místicos das mais diferentes tradições culturais e
religiosas,  e da qual a atual ONU é uma pálida,  mas valiosa,
antecipação.


NOTAS:

(1) “Sermão do Bom Ladrão”, Padre Antônio
Vieira, Ed. Princípio, 1993, 48pp.

(2) “O Essencial de Confúcio”, Thomas Cleary,
Ed.
Best Seller, 197 pp. Ver p.113.

(3) “Yoga, A Arte da Integração”, Rohit Mehta,
Ed. Teosófica, 312 pp. Ver pp. 106-107.

(4) “Os Maçons que Fizeram a História do
Brasil”, de José Castellani, Ed. A Gazeta Maçônica, 177 pp. Ver também
“História do Grande Oriente do Brasil”, de José Castellani, editado pelo Grande
Oriente do Brasil, Brasília, 358 pp. e apêndices, 1993; e “Maçonaria e Ação
Política”, de Waldemar Zveiter, Editora Mandarino, RJ, 192 pp.

(5) “José Bonifácio, o Patriarca da
Independência”, de Venâncio F. Neiva, um resumo biográfico, Ed. Irmãos
Pongetti, RJ, 1938, 304 pp. Ver especialmente p.278.

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